No mundo das redes sociais é comum ver pessoas que acreditam ser tão belas, felizes e bem-sucedidas que automaticamente atraem para si a energia negativa dos invejosos. Frases como “aceita que dói menos”, presentes na cultura da ostentação contra os “recalcados” são exemplos da fixação na figura do invejoso. Uma pessoa assim geralmente está inconsciente do fato de que a inveja, na verdade, vem de dentro: a personalidade exuberante daquele que busca estar sempre sob os holofotes esconde por trás de si alguém cuja auto-estima é muito baixa, e assim procura compensar o sentimento de inferioridade através da batalha pela aprovação geral. Alguém dentro de nós sente-se rejeitado, solitário e deseja muito ter a aceitação que o outro tem: é este “invejoso” interior que, negado pelo sujeito, é sempre projetado no outro, como se estivesse eternamente à espreita. Segundo Jung, a psique é feita de opostos: por exemplo, para todo tímido há um desinibido interior – para alguns, basta um pouco de bebida para que o desinibido se mostre. Em todo bem-sucedido há a imagem inconsciente do fracasso, que o assombra e o faz lutar pelo sucesso. O desenvolvimento psíquico de um adulto civilizado exige que este abra mão de inúmeras possibilidades de vida para desenvolver apenas uma (ou poucas), nas busca pela sobrevivência e sucesso financeiro e social. A energia psíquica – conceito criado por Jung para definir a força interior que anima a nossa disposição, vontade e desejos – de que dispomos é limitada, e não há como nos desenvolvermos bastante em uma área da vida sem retirarmos esta energia de outros setores, que assim ficam privados de expressão, não se desenvolvem e permanecem infantis. Não é raro conhecermos alguém que, sendo um intelectual, pensador ou estudioso, é no entanto bastante infantil em seus relacionamentos pessoais, muitas vezes morando com os pais até tarde em sua vida adulta. O escritor brasileiro Malba Tahan, em seu livro “O Homem que calculava”, relata que os grandes calculistas na história da humanidade, capazes de feitos prodigiosos na matemática, eram pessoas medíocres em tudo o mais. Assim, não é incomum encontrarmos pessoas consideradas famosas, importantes, inteligentes, belas ou talentosas que vivem situações deploráveis em sua vida privada. Estas oposições, no entanto, quase sempre permanecem ocultas das mídias sociais – que visam mostrar sempre nosso melhor ângulo – mas aparecem em profusão nos consultórios de psicoterapia. A nossa cultura parece ignorar que é impossível investir somente no êxito social sem pagar um caro preço por isso. Ao acreditar que é possível viver apenas o belo, o bem-sucedido e o correto, ignoramos partes da nossa personalidade que guardam o feio, o fracassado e o imoral. Estas subpersonalidades, que podem aparecer em nossos sonhos como animais ou humanos deformados que nos atacam ou ameaçam, acabarão manifestando-se na nossa vida consciente e causando sérios problemas, caso suas necessidades não sejam levadas em conta. Em momentos como o que viveu no início deste ano o estado do Espírito Santo, que passou por uma séria greve de policiais militares, lembramos da esquecida lição das guerras e dos fascismos que assolaram o século passado: o cidadão comum e ordeiro guarda dentro de si uma besta furiosa, pronta para aterrorizar os seus irmãos assim que for solta. Greves semelhantes aconteceram na Bahia em 2001 e 2012, com um saldo impressionante de saques e homicídios que só é explicado pelo fato de que muitos cidadãos comuns engrossaram a fileira dos criminosos, quando perceberam que poderiam agir impunemente. Para Jung, não existe moralidade enquanto ignoramos que a nossa besta interior está simplesmente acorrentada, pronta para sair à primeira oportunidade: nós somos tão evoluídos quanto nosso lado mais sombrio e escondido, correntes tão fortes quanto nosso elo mais fraco. Não nos enganemos: enquanto a decisão de não praticar o mal abominável ao próximo for resultado apenas de uma proibição social ou do medo da punição divina, continuaremos tão bárbaros como sempre.
Autor: Paulo Nunes
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